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Casa Ibiray

 

É possível ter duas respostas diferentes e válidas a uma mesma pergunta? Podemos dizer que sim, pelo menos em arquitetura. A casa Ibiray brinca desse jogo repetidas vezes, com a manipulação de elementos complementares e de situações de grande contraste como o cheio e o vazio, o muro e as aberturas.

Projetada pelos arquitetos Lucho Oreggioni e Sonia Prieto no bairro de Punta Carretas – um setor em Montevidéu conhecido como “A Ilha”, por suas características urbanas de baixa densidade e a convivência de casas do início do século 20, sem recuo, e habitações contemporâneas com recuo à frente – a casa posiciona-se no eixo desses dois universos. Por um lado, ocupa o lote que foi de uma casa antiga e arruinada, mantendo apenas os muros de divisa, como “um traço da antiga construção”, nas palavras dos arquitetos. Por outro, propõe um recuo virtual no lado norte, um volume de ar colonizado parcialmente, que ocupa a metade do terreno.

Mantendo sempre a unidade, o projeto divide-se em duas partes – duas respostas diferentes – tanto em planta quanto em elevação. O interior da casa representa a massa construí­da, um volume de concreto e vidro que ocupa principalmente a área contra o limite sul liberando o lado norte. Este setor aberto contém os pátios, a caixa de vidro da sala de estar e um terraço no segundo andar. A solução da área livre instalada à frente da casa difere-se da tradicional em Montevidéu, com o pátio no centro ou no fundo do terreno. Há, ainda, o fator clima: o sol que vem do Norte é um bem necessário no inverno uruguaio.

A divisão em dois acontece também na fachada, com sua parte inferior organizada por um muro quase maciço pertencente à antiga casa, e com aberturas ortogonais que obedecem a um ritmo constante. Este elemento se relaciona materialmente com o ambiente do bairro onde predomina o reboco pintado. “Procurávamos uma casa que negociasse a ligação com algumas características urbanas e que também fosse essencialmente uma peça do seu tempo e legível como tal”, continuam Lucho Oreggioni e Sonia Prieto.

O nível superior da fachada, ao contrário, constrói os espaços vazios utilizando uma trama de concreto e aço, na qual agarra-se a vegetação, um véu variável com o tempo em cor e densidade. Nesta trama, o elemento de concreto serve de viga e recipiente para as trepadeiras. A fachada lateral mantém essa relação, somando o volume de concreto aparente do quarto principal, que se desprende sobre o muro do térreo, separado pela janela de correr do quarto de hóspedes.

O terreno todo é projetado, mas a casa como construção ocupa só uma parte, com áreas exteriores e interiores entrelaçadas. Deste modo, a sala de estar fica na zona central do térreo – organização que divide em dois os espaços exteriores, projetados para serem habitados como se fossem quartos ao ar livre. É sobre a sala de estar que nasce o terraço superior, coberto por um deck de madeira, e também de proporções de quarto: é mais uma oportunidade de habitar ao ar livre, desta vez no segundo andar. As divisões não são nítidas, são sempre fluidas. Como em busca do equilíbrio, por exemplo, a churrasqueira (o tradicional parrillero uruguaio) inserta-se no volume interior, ao lado da sala de jantar e da cozinha: forma-se mais um exterior-interior.

O espaço de estar é contínuo com o de jantar e a cozinha – estes últimos apenas separados por uma ilha de granito e concreto. O piso de pedra preta e a cobertura que deixa ver as marcas da fôrma reforçam a unidade do espaço. Esta área acaba na escada de concreto, que, revestida de laminado, guarda o equipamento fixo da cozinha, e faz a comunicação com o andar superior.

No segundo andar, um segundo percurso, paralelo à fachada norte, foi criado para que tanto o banheiro quanto o escritório fossem pensados como blocos autônomos e afastados do plano de vidro. Portas de correr de madeira regulam a relação entre as diferentes atividades. Este espaço de circulação gera uma fachada dupla para o pátio frontal e o terraço, um filtro entre exterior e interior que permite o vidro contínuo desde fora, e o controle da luz e das visuais desde dentro.

A Casa Ibiray resulta um exemplo de intervenção na cidade consolidada, e de arquitetura doméstica: em um bairro de perfil baixo, mas com valiosas qualidades urbanas, inserta-se de maneira meditada, dialogando com seus vizinhos sem renunciar a sua imagem contemporânea. Propõe os filtros necessários para se poder abrir fortemente ao exterior sem praticar exibicionismo, consegue travar os espaços interiores com os exteriores sem que aqueles renunciem a seu caráter de abrigo. E utiliza um repertório espacial que assegura uma vivência intensa e prazerosa em seus 170 m2.

autor: gustavo hiriart

publicado originalmente na revista aU #210, São Paulo, Brasil